Música da terra portuguesa

O lirismo, contido ou transbordante, é talvez a característica central da música lusitana. Nestas notas, faço um inventário muito sucinto daquilo que me parece ser "o melhor do melhor", numa música que me alimenta desde que, já em 1978, me injetei grandes doses de fados de Amália Rodrigues nas solidões do Hotel Bragança em Lisboa, da Pensão Capa-rica (e da minha barraca naquela praia!) e do Hotel Mondego em Coimbra. Depois fui conhecendo todo tipo de música popular com cunho tradicional –e quanto mais conhecia a música portuguesa, mais gostava dela.

Panoramas

São duas obras capitais de introdução à música portuguesa, na sua vertente etnográfica. A primeira é a de Michel Giacometti, cujas compilações são lançadas em cinco discos regionais (Folk Music Portuguesa, Strauss/Portugalsom), mais o intitulado Canções e Danças de Portugal (id.). A segunda, mais recente e em seis discos, também organizados por regiões, fica por conta do outro grande andarilho da geografia musical lusitana: José Alberto Sardinha (Portugal. Raizes musicais, editado pelo Jornal de Notícias). Lembremos que, como apontei no capítulo dos livros, os programas de televisão de Giacometti (Povo que canta) foram publicados em 2011, possibilitando o acesso a documentação audiovisual de primeira linha.

Genuínas compilações repletas de grandes momentos são: Tradições musicais de Portugal, Smithsonian/Folkways, 1988 (com destaque para a Terra de Miranda, o Minho, a Coimbra das “guitarradas”, Monsanto, o Ribatejo e Cuba); Viagem musical. Portugal, Auvidis, 1994 (desigual, destacando-se os temas de Malhadas, Serra da Estrela, Catarina Chitas, os tambores dos Lavacolhos e os grupos alentejanos); Musiques & musiciens du monde. Portugal, Auvidis, 1988 (Beira Baixa, Douro Litoral, Alentejo e Lisboa); Voix de femmes du Portugal, Auvidis, 1995; Povo que canta, Emi, 2003 (com não poucas maravilhas recolhidas já no novo século, e que demonstram como, apesar da decadência, muitas coisas belas ainda vão demorar a desaparecer).

Trás-os-Montes

No final do século XX surge a editora Sons da Terra, que tem desenvolvido um enorme trabalho, centrado sobretudo na província transmontana, que, à exceção dos grupos de pauliteiros –destaquemos discográficamente os de Cércio e Duas Igrejas–, encontrava-se quase completamente abandonada. As excepções foram quatro compilações poderosas, cheias de quintessências: Trás-os-Montes. Chants du blé et cornemuses de berger, Ocora, gravações de 1978 de Anne Caufriez, autora da obra clássica sobre os romances transmontanos; Portugal. Música tradicional. Terras de Barroso, Saga, 1986, só em cassete, com introdução do Padre Fontes, o grande etnólogo de Montalegre; Terra de Miranda, LP, Saga, 1987, com Emerência Rodrigues, Maria Elena Ventura, Maria Rosa Mourinho, Virgílio Cristal, Francisco Domingues (o trovador de Paradela)...; e Memórias sonoras. Mirandum, Mirandela..., Gemp/La Talvera, 1995, cassete com encarte luxuoso.

Sons da Terra organizou a sua discografia em coletâneas, sendo a maior a dos gaiteiros: Manuel Paulo Martins (Val de Mira, Miranda, o meu preferido); Ezequiel dos Santos (Vale Martinho, Mirandela); José Maria Fernandes (Urrós, Mogadouro, com o colossal percussionista Eduardo Afonso, uma espécie de Sammy Penn transferido de New Orleans para Bragança, e que também acompanha o álbum dos jovens António Fernandes e Henrique Fernandes); Desidério Luis Afonso (Especiosa, Genísio, Miranda); Aureliano Ribeiro (Constantim, Miranda); Raposo Nascimento (Malhadas, Miranda); e Ângelo Arribas (Freixenosa, Miranda). (Notemos à margem, nesta colecção, os registos de dois gaiteiros não transmontanos: Flamínio de Almeida, do Casal da Misarela, Coimbra, e Toni das Gaitas, do Porto). Os tamborileiros que se destacam são os da Freixiosa e de Constantim, vila do mais velho de todos, o mestre Virgílio Cristal, de quem há oito atuações no terceiro disco da coletânea (às vezes olho para a minha mão direita e lhe digo: "Você pode se sentir orgulhosa, já que apertou a mão de Virgílio Cristal"). Na série de cantigas e músicas tradicionais, encontramos duas obras-primas: o volume de Duas Igrejas (com as "modas" dos serões e dos fiadouros) e o das Malhadas, sem desmerecer os de Aldeia Nova, Caçarelhos e Freixenosa (com a encantadora Clementina Rosa Afonso) –tudo na incrível Terra de Miranda, a que pertence outra maravilha de Sons da Terra: o álbum do Grupo de Cantares de Sendim intitulado L'Alma, bem como um volume da autoria do Palaçoulo. Na mesma linha, mas na Lombada (Bragança), temos Cantares de Palácios (mas do selo Emiliano Toste, 2003). Por último, referirei o disco de Francisco dos Reis Domingues, o "Tiu Lérias" de Paradela, figura genial por excelência da cultura popular mirandesa, e o que contém a compilação mirandesa feita em 1932 por Kurt Schindler. As primeiras edições de Sons da Terra de Miranda contam com um registro antológico, que acompanha o livro Raízes musicais da Terra de Miranda (2001).

O distrito de Vila Real apresenta um destaque: as tunas, grupos de cordas que criam música cheia de magia e força telúrica, apesar de muitas vezes se inspirarem nas mais banais danças europeias. Quatro discos acompanham a gloriosa obra de José Alberto Sardinha Tunas do Marão (Tradisom, 2005), a que se junta o LP O toque de Carvalhais (Saga, 1989). Esta grande música estendeu-se desde sempre aos distritos do Porto (Grupo Musical Os Filhos da Noite, Marco de Canaveses) e Viseu (Orquestra Beira Douro, Souselo, Cinfães, e Orquestra de Quinhão, Tendais).

Noutras zonas de Trás-os-Montes, destaco o disco que acompanha o livro Raízes musicais de terras e gente de Vinhais (Tradisom, 2004), e, já de cariz mais comercial, os discos dos ranchos folclóricos de Vimioso e Vila Marim (Mesão Frio).

Beiras

A zona das tunas –Cinfães, Resende, Castro Daire– é especialmente rica, com bons grupos folclóricos, como os de Sta. Maria de Cabril, Sta. Maria de Cárquere, Vilar de Arca, Nespereira, Pias e, sobretudo, Tendais. Outros bons ranchos estão em Torredeita, Passos de Silgueiros, Moimenta da Beira, Candal, Ceira, Lourosa, Vinhó, Paços da Serra... Na zona de Aveiro, o Grupo Folclórico da Região do Vouga tem qualidade, e Águeda e Ovar também cada um tem vários grupos, destacando-se outros em Albergaria-a-Velha, Vale Domingos, Moldes (com as danças e coros de Arouca), Pampilhosa, Cacia, Gafanha da Nazaré, Fermentelos, Vimieira, S. Martinho da Gândara... O meu conhecimento dos inúmeros grupos folclóricos portugueses é através das cassetes que encontrei nas minhas viagens, e por isso é aleatório. Muitas vezes, esses grupos combinavam o muito bom com o vulgar, e mesmo, quando se inseriam composições não tradicionais, com o ruim. Os instrumentais e solos vocais geralmente são excelentes, e os vocais femininos raramente decepcionam.

Quanto a esto último, é numa aldeia da Beira Alta que, graças em grande parte à sua voz feminina, surge aquele que se pode considerar o melhor rancho folclórico do país: o Grupo de Cantares de Manhouce. Os três discos que conheço são extraordinários, e a sua vocalista, Isabel Silvestre, já conseguiu gravar com sucesso três discos pessoais: EuA portuguesa e Cânticos da terra e da vida.

A música da Beira Baixa é um mundo à parte, identificada pelo uso do adufe, e por isso não é de estranhar que tenha mesmo produzido um disco com projeção mundial: Portugal: Chants et tambours de Beira-Baixa, colecção "Musique du Monde", 1992, à qual se junta a colecção de José Alberto Sardinha Idanha-a-Nova. Toques e cantares da vila, Terra/Emi, 1995. Os grupos folclóricos são pouco abundantes, mas há pelo menos dois excepcionais: o de Silvares e o de Monsanto, a que se juntam os de Açor, Aranhas e Penha Garcia (“Os Garcias”). A Orquestra Típica Albicastrense (isto é, de Castelo Branco), embora de cariz culto, contou por vezes com a participação de Eugénia Lima, a maior acordeonista de Portugal, o que também nos lembra que a família de Amália Rodrigues era da Beira Baixa.

minho

A exuberante música minhota deve ser saboreada com algumas malgas de vinho verde, branco ou tinto (este, pouco ou nada conhecido fora de Portugal, é o que mais agrada aos tradicionais). Alguns dos seus grupos folclóricos são adoráveis, nomeadamente os de Carreço e Sta. Marta de Portuzelo, mas aqui a lista é interminável, e as suas gravações trazem sempre surpresas: Viana do Castelo, Barcelinhos, S. Pedro de Souto, Meadela, Vila Praia d'Âncora, Parada de Gatim, Ponte da Barca, Vila Verde, Famalicão, Amorosa, S. Paio, Corredoura, Briteiros, Godinhaços, Alvarães, Castelo do Neiva, S. Pedro de Merufe, Apúlia...

Dois discos importantes são Cantares de mulheres do Minho, da já referida editora Emiliano Toste, 1998, e o que acompanha o livro de José Alberto Sardinha A rusga de S. Vicente (Braga), Tradisom, 2006 .

Outros conjuntos muito especiais são os dos cavaquinhos, pequenas violas origem do ukulele, que, agrupados, dão um som delicado e estrondoso ao mesmo tempo. O grupo de cavaquinhos do Grupo Folclórico Dr. Gonçalo Sampaio e o grupo Henrique Lima Ribeiro, ambos da cidade de Braga, são magníficos. Seguem-se os grupos folclóricos de cavaquinhos, mas interpretando temas vocais, como os grupos Estrela do Lima (de S. Martinho da Gândara, já em Aveiro), ou Flôr-Macieira (de Lousada, Porto).

Douro Litoral

Lousada já pertence ao distrito do Porto, mas em termos musicais (e não só), esta zona, pelo menos até pouco depois da fronteira com o Douro, é uma continuação do Minho, como o demonstra o excecional Grupo Folclórico de Moreira da Maia. Outros são os de Paranhos, Caxinas, Navais, Sta. Eulália de Lamelas, Gulpilhares. Isolado deixamos o Grupo Folclórico Poveiro, muito intenso, ou não representaria a população piscatória mais característica de Portugal; esta originalidade estende-se à vizinha Vila do Conde, com a curiosa música da Associação Cultural e Recreativa do Rancho das Rendilheiras do Monte.

A caminho de Vila Real e Viseu, as diferenças são notórias, com os grupos de Baião, Barqueiros, Vila Boa do Bispo ou Amarante. O violino e as cordas tornam-se tão importantes quanto o acordeão e a concertina, ou mais. Na zona de Amarante temos a Chula de Carvalho Rei, a Tocata Popular de Amarante e a famosa Festada do Tâmega, que recria a música de todo o país, assim como outros agrupamentos bastante aceitáveis: Verde Minho, Cantadouro, Ronda de Folclore Português. (O primeiro, de Amares, publicou uma cassete cativante em 1989: Romeirada, que me traz sempre memórias mágicas dos tempos em que descobri as terras do Alto Douro y da Beira Alta com fascínio, senão vertigem).

Como gravações documentais, devemos referir a publicação em 2001, por Sons da Terra, do álbum Cantigas sem tempo. S. Pedro de Rates. Em 2012, José Alberto Sardinha publicou na Tradisom o livro sólido Danças populares do Corpus Christi em Penafiel, em disco e dvd.

Ribatejo, Estremadura

O Ribatejo é muitas vezes reduzido ao rítmico fandango, mas a sua música tem um sabor particular, perceptível em grupos como os do Paço dos Negros (o meu preferido), Torres Novas, S. Vicente do Paúl, Benfica do Ribatejo, Chamusca, Cartaxo, Almeirim , Riachos, Aveiras de Cima, Ribeira de Santarém...

Três discos (Tradisom, 2000) ilustram o monumento do mestre José Alberto Sardinha Tradições musicais da Estremadura, a maior monografia dedicada a uma região de Portugal, que era também a mais esquecida ou subestimada, mas na qual este incansável estudioso escavou tesouros assombrosos. O próprio Mestre prefaciou um belo livro, com dois discos, sobre uma grande personagem: Joaquim Roque. O último gaiteiro tradicional de Torres Vedras (Tradisom, 2008). As gravações dos ranchos folclóricos estão longe de toda esta música, mas encontram-se coisas boas nos discos dos grupos da Achada, Alenquer, Vale do Breijo, Quinta do Sobrado, Alvorninha, Telheiro, Leiria, Coentral...

Alentejo

Esta é uma música excepcional, séria, sem concessões, e refiro-me, claro, aos cantos polifónicos que caracterizam uma região tão vasta. Aqui, mesmo nas gravações etnográficas entram os grupos corais que gravam discos comerciais. É o caso dos panoramas que citei no início, e é o caso da compilação de 32 peças que Giacometti realizou na zona de Serpa por volta de 1982: Modas populares do concelho de Serpa (edição Câmara de Serpa), com interpretações dos grupos de Serpa, Pias, Vale de Vargo, Aldeia Nova de S. Bento e Vila Verde de Ficalho. Pouco tempo depois, pela editora Playasound, surgiram as Musiques traditionnelles de l'Alentejo, centradas na região de Ourique e Almodóvar, pátria da viola campaniça, à qual José Alberto Sardinha viria a consagrar um livro extraordinário (Viola campaniça, Tradisom, 2001, com dois discos), em que participam alguns músicos que ali se ouviram. É uma música diferente, extremamente sensível (e em que, diga-se de passagem, são malditas as "barragens" que os grupos corais costumam enaltecer, sobretudo a do Alqueva, um monstruo construído quando a agricultura já estava totalmente industrializada). Uma quarta referência é o disco da editora Ocora Portugal. Musique de l'Alentejo, cheio de preciosidades, e no qual, apesar do título, também abunda material algarvio. E uma quinta, o grosso livro com dois discos O fado operario no Alentejo (Tradisom, 2004).

O que posso dizer sobre os grupos corais? Que todos os que conheço nunca são menos do que excelentes. Alguns dos meus preferidos (para além dos já referidos em Serpa): os Mineiros de Aljustrel (onde não faltam temas de revolta social, que por vezes vêm à tona nos outros grupos), os Ceifeiros de Cuba, os Ganhões de Castro Verde, os Cantadores de Redondo (até onde chegaram as saias), os Amigos da Vidigueira, o de Viana... A curta distância estão os Vindimadores da Vidigueira, os Rurais de Figueira de Cavaleiros, os Arraianos de Barrancos, os Operários da Messejana, os dois grupos de Alvito, os Trabalhadores de Ferreira, os Ausentes do Alentejo (o nome destes expondo a sangria da emigraçõ, especialmente dirigida à zona industrial a sul do Tejo).

No Alentejo sempre existiram grupos corais femininos, ainda que sejam mais raros. Há esplêndidos registos de corais de Portel, Moura (Brisas do Guadiana), Castro Verde (As camponesas), Ervidel, Cuba (Flores do Alentejo)... Toda esta música, tal como a música masculina, é irrepreensível, apenas em raríssimas ocasiões um determinado compositor estragando-a, pois é impossível imitar com sucesso a poesia popular tradicional.

Das grandes exceções ao canto coral, já apontamos a da viola campaniça –que, aliás, também acompanhava cantos corais. Há mais três.

Em primeiro lugar, na zona de Portel, as canções tradicionais têm um rico acompanhamento instrumental, como se pode verificar nos discos do seu Grupo Coral de Cantares Regionais, discos de sucesso, mas que um bocado comerciais, sobretudo pela natureza repetitiva das letras de suas canções. Mas sem deixar de ser jamais boa música.

Em segundo lugar, no Alto Alentejo a música é instrumental, com a peculiar forma das saias, em que existe uma certa relação com a Estremadura/Andaluzia que não existe na música coral. Assim, reaparece ali a fórmula do rancho folclórico, alguns bons, como os de Fortios, Bencatel, Ponte de Sôr, Fronteira, Montemor-o-Novo (os Fazendeiros) ou Castelo de Vide. Lembremos também o disco que Sons da Terra dedicou à concertina de Bernardo Lopes Póvoa, natural de Benavila (Avis), que interpreta tanto saias como temas de outros pontos do país.

A terceira exceção é uma surpresa oferecida por Michel Giacometti após a sua morte: a rica música do Sado. Junto com os filmes de Povo que canta, há um encarte com dois discos espetaculares, nos quais, ao lado dos grupos corais, temos tocadores de armónica, de acordeão, de concertina y de armonio (o incrível mestre Queimado), duas mulheres maravilhosas de Casa Branca... Mas o mais curioso é a existência de um tema que parece ser único para dar identidade a esta região de Alcácer-Torrão: "O ladrão do Sado", que dá título à publicação.

Algarve

Se o Ribatejo costuma ser reduzido ao fandango, o Algarve quase não teria senão o corridinho. O erro é grosseiro, mas, salvo as gravações nos referidos discos coletivos, é preciso dizer que se trata de uma região não muito explorada. Poucas são mesmo as cassetes de grupos folclóricos algarvios com que me deparei: Alte, Lagos, Conceição de Faro, Luz de Tavira, Calvário (Estômbar), Tavira.

Para mim, musicalmente falando, o Algarve tem nome de mulher: Adélia Rosado. Giacometti gravou-a no final dos anos 50 em Aljezur, e a sua voz só se ouve no quinto disco de Portuguese Folk Music, interpretando de forma sublime três romances. Mais tarde soube que ele insistia em ser paga por Giacometti, e que muito mais tarde José Alberto Sardinha a considerou impossível. Mas sua voz a faz perdoar essas atitudes e todas as que ela quiser

Na voz inefável de Adélia Rosado vivia toda a magia poética, a graça singela, o sentimentalismo amoroso – tão obsessivo – da mais delicada música vocal do povo português.

Acordeões / Cantigas ao desafio

Muitas vezes já foi apontado o efeito negativo do acordeão na música popular, devido ao seu som maciço, que liquida as sutilezas das cordas. Seja como for, o acordeão é uma instituição da música portuguesa, com figuras extraordinárias. Fora do Minho, que é a terra rainha, a figura principal é uma mulher: Eugénia Lima, cujos álbuns são dezenas, e todos magníficos. Outros nomes, quase todos do norte: Adelino Carneiro, Fernando Inês, Hermenegildo Guerreiro, Álvaro Carminho, Luís Filipe, Avelino Rodrigues, Joaquim Dias, Zé Pinheiro, Luís Vicente, Manuel Neves, Joaquim Neves, Teresa Guerreiro, Samuel.

Sons da Terra têm editado uma série de discos de concertina, para além do já referido do alentejano Bernardo Póvoa, e o certo é que a concertina tem tido um impacto inusitado nos últimos tempos. Tocadores de concertina e cantadores ao desafio antologa um encontro que decorreu em 1998 em Monção, e que poderia ter sido melhor. Mais interessantes são os dedicados a Bento Macedo, de Vascões (Paredes de Coura) e a Nelson Vilarinho, de Covas (Vila Nova de Cerveira), que ouvi a 6 de Novembro de 1999 precisamente nessa cidade. Outro grande da concertina é Neca Tamanqueiro, que também conheci naquele dia.

Os titãs das cantigas ao desafio são geralmente bons acordeonistas. Um deles chegou a ser uma figura monstruosa da música popular: Quim Barreiros, especialista em equívocos sexuais. Mais tradicionais são Delfim Pereira, Armando Marinho e Cachadinha. Cachadinha (representante de toda uma dinastia) é o que mais emana simpatia, Marinho o de voz mais potente e Delfim o de maior sentido poético. Outras maravilhas de inspiração automática são Manuel e António Alves Pêta, Manuel Pereira, Manuel Gonçalves Rosa, Sargaceira, Sameiro, Cunha de Vila Verde, Duarte de Lanhoso, Manuel Silva, Carlos Ribeiro, Tony Moreira, Leituga, Carvalho da Cucana, Carlos Vinagre, Canário , Carlos Soutelo, Jorge Ferreira, Jack Sebastião, Celorico de Vieira do Minho, Augusto Moreira. São quase todos minhotos, e têm em comum fazer uma arte não reconhecida, genuinamente popular, que ainda goza da mais perfeita saúde, embora os seus tempos áureos estejam longe. Intervêm espontaneamente nas inúmeras festas do norte litoral, nas ruas e tabernas, sem por isso se exibirem como espectáculo, excepto em eventos especiais.

Num mundo governado por mulheres, como o das terras do Minho, não surpreende a abundância de mulheres improvisadoras de cantigas ao desafio. Há até uma rainha dessas cantigas: Maria Celeste. Nascida numa aldeia de Ponte da Barca, a sua voz não é nada de excepcional, mas sim a sua capacidade de improvisação, a sua candura de outro tempo, o calor que dá ao que canta, a vulnerabilidade que mostra quando se lhe abre uma janela da alma. É uma estrela da música popular minhota, com o seu próprio grupo musical, mas o que encanta são as suas cantigas ao desafio com (ou contra) todos os grandes do outro sexo, em inúmeras cassetes e discos. Outras senhoras desta arte são Rosa Oliveira, Adília Ribeiro, Maria Glória Sobreiras, Rosa Sousa, Natividade Vieira, Maria Camila Moreira, Arlete Rodrigues, Irene Passos, Naty, Rosa Maria.

Fado de coimbra

Os puristas preferem falar em "canção", para se distinguirem de Lisboa, mas desde as origens discográficas desta música, a palavra "fado" aparece nos títulos. É música para alunos e professores (e apenas para homens), mas bebe de fontes populares. Isso já é apreciado na figura pioneira e seminal de António Menano, a essência do fado de Coimbra, com muitas gravações, nas quais recebeu acompanhamento de guitarra e piano. A sua música está bem editada, devendo a sua audição completar-se com a do álbum da editora Heritage Fado de Coimbra. 1926-1930, onde aparecem as restantes grandes figuras antigas, entre as quais se destaca Edmundo de Bettancourt, outro mestre desta música tão melancólica.

O repertório do fado conimbricense é fechado, com infinitas versões de um punhado de temas. Uma infeliz tentativa de renovação foi realizada nas décadas de 1960 e 1970, com baladas demagógicas e piegas de ativistas políticos, inclusive de um futuro poeta aspirando a algo tão sinistro (e, portanto, antipoético) como presidente da república. Isso pode ser apreciado nos dois "retratos" do fado coimbrão que vou citar, ambos munidos de extensos roteiros. O primeiro intitula-se Tempo(s) de Coimbra. Oito décadas no canto e na guitarra (1992). O seu primeiro registo é impecável, com o cume num fadista que infelizmente pouco gravou: Alfredo Correia (nascido no Porto, mas de família transmontana). No segundo, conjuga-se o velho lirismo sentimental, e novamente na voz de Alfredo Correia, com a já referida agressão. A terceira é soberba, visto que é constituída apenas por "guitarradas". O segundo "retrato" a que me refiro já é do novo século: 100 anos. Fado de Coimbra, e dele pode-se dizer que o fado de Coimbra já está na estagnação, embora as guitarras se mantenham intactas.

Os guitarristas mais conhecidos são Artur e Carlos Paredes, que recorrem frequentemente à música clássica. Antonio Brojo e António Portugal são quem tocam no Tempo(s) de Coimbra, mas a lista é muito longa, como é o caso dos bons vocalistas: Armando Marta, Barros Madeira, Fernando Machado Soares, António Bernardino, Lacerda e Megre, Fernando Rolim, Lotário José, Fernando Ventura, José Mesquita, Manuel Branquinho, Valdemar Vigário, Magina Pedro. Este último, com Nuno Oliveira, editou em 1989 o impecável disco Fados e baladas de Coimbra, quase igualado por Saudades da Rua Larga, que em 1981 publicara a Tertúlia Académica Rua Larga. Mas, infelizmente, raros são os discos de Coimbra que não se afastem da tradição poética que faz toda a glória do fado coimbrão, com canções tão belas, e por vezes verdadeiramente abismais, como "Lá longe ao cair da tarde", "Estrelinha do Norte", "Canção do vento", "Contos velhinhos", "Não olhes para os meus olhos", "Vento no batas à porta", "Rosas brancas", "Ao morrer os olhos dizem", "Rua larga", etc.

Fado de Lisboa

Antes de mais devo dizer que para mim existe, por um lado, a música (e as suas mil predilecções), e por outro, num mundo à parte, os fados de Amália Rodrigues.

Muito se tem escrito sobre as origens do fado, incluindo numerosos livros. A solução, de resto muito óbvia, tem sido dada por José Alberto Sardinha na obra monumental, com quatro discos excepcionais em que se faz uma digressão de campo por todo o país, A origem do fado, Tradisom, 2010.

À editora britânica Heritage, que já referi várias vezes, cabe o mérito de ter exumado um fabuloso lote de discos dos anos 20 e 30 que retratam aquela remota era dos fados: Fado de Lisboa. 1928-1931As fadistas de Lisboa. 1928-1931Ercília Costa com Armandinho. 1930 e Portuguese string music. 1908-1931.

Acabo de citar o maior guitarrista de fado de todos os tempos: o fabuloso Armandinho, a quem a Heritage dedica um disco inteiro: Armandinho. 1928-1929. Depois há inúmeros guitarristas esplêndidos, naquela que não é só música única mas impecável, já que os fados vocais têm por vezes letras medíocres, e mesmo desprezíveis. Depois de Armandinho, o maior é José Nunes, que tem como solista um CD da editora Valentim de Carvalho e um LP da Movieplay. Outros nomes brilhantes são Raúl Nery, Jorge Fontes, Jaime Santos, António Chainho, Carlos Gonçalves, Domingos Camarinha, Carvalhinho, Costa Branco, Arménio de Melo, António Bessa, Pedro Caldeira Cabral (com uma orientação mais ampla, mas com grandes solos de fado). Grandes discos são A essência da guitarra portuguesa de Carlos Gonçalves, Guitarras portuguesas de Camarinha, a dupla Guitarras do fado ao vivo na Aula Magna (com Paulo Parreira, Manuel Mendes e Ricardo Rocha) e toda a colecção da editora Estoril (nada menos que 16 volumes) Lisboa. Cidade do Fado. Acrescente-se que, por outro lado, estes guitarristas acompanham os fadistas, e não esqueçamos a importância como segunda voz da “viola” (ou seja, o equivalente à guitarra espanhola), com os seus respetivos artistas.

Na lista de fadistas não indico os mais recentes, pois o leitor provavelmente os conhece melhor do que eu. Ninguém mais será igual, não apenas à divina Amália, o que obviamente é um absurdo, mas nem a Alfredo Marceneiro –um personagem selvagem e boêmio, que detestava gravar em estúdio por falta do calor do público– nem a Maria Teresa de Noronha –a delicadeza personificada, uma aristocrata de espírito e poesia. Estes três nomes compõem a trilogia sagrada do fado e os seus discos são fáceis de obter, pois são clássicos sempre vivos. Quem não gosta destes três fadistas –artistas supremos, tão refinados quanto profundos– não pode gostar de fado nem de nada que valha a pena nesta vida.

Gosto mais das fadistas, sendo as minhas preferidas a Fernanda Maria, a Teresa Tarouca e a Lucila do Carmo. Mas há muitas mais: Hermínia Silva, Isabel de Oliveira, Maria Albertina, Natália Bizarro, Helena Tavares, Ada de Castro, Flora Pereira, Alice Maria, Maria Valejo, Dina do Carmo, Lenita Gentil, Beatriz da Conceição, Maria da Fé, Maria Armanda, Natércia da Conceição, Maria da Conceição, Isaura Gonçalves, Mariana Silva, etc. Entre as vozes masculinas, um excecional vocalista é João Ferreira Rosa, mais conhecido pelo tema "O embuçado", mas que tem imortalizado alguns fados impressionantes: "Fragata", "Mansarda", "Triste sorte", "Despedida"... Muito castiços são Carlos do Carmo, Fernando Maurício, Frutuoso França, Fernando Farinha, Carlos Macedo, Manuel de Almeida...

Um álbum com uma atmosfera incomparável é o editado em 1983 por Rão Kyao: Fado bailado. Composto por canções quase todas associadas a Amália, este disco transporta-nos como nenhum outro para a Lisboa mais autêntica, seja para as sombrias ruas de Alfama ou da Madragoa ou para a luminosidade do Mar da Palha. O curioso é que Rão Kyao é um grande flautista, enquanto aqui usa o saxo tenor, naquilo que foi um sucesso absoluto: o resultado é comovente. Outra obra-prima deste grande músico não pode ficar de fora, ainda que nos afastemos do fado: Viagens na minha terra, enquanto noutros discos seus, como Danças da ruaEstrada da terra ou Porto Alto, há sempre algumas canções de inspiração genuinamente popular verdadeiramente antológicas. Sublinhemos que em Viagens na minha terra Isabel Silvestre interpreta um imortal "Canto do Vouga", havendo ainda duas outras peças sublimes: "Toada beirã" e "Ó rama ó que linda rama".

Já que anotamos à margem, anotemos também, na rica música das ruas de Lisboa, o nome da ceguinha Dona Rosa, que vendia os seus discos onde quer que se sentasse a cantar –comprei-lhe um na Rua Augusta– , e que até converteu-se numa estrela da "música étnica".

Mas vamos encerrar, e com Amália Rodrigues, claro. Viveu muito e gravou muito, por isso encontramos fragilidades na sua obra, como os temas hispânicos (e até internacionais), as gravações com acompanhamentos orquestrais ou as canções com "mensagem". A grande Amália está noutro lado, mas dessa parte fica uma quantidade infinita de música sua, a mais emotiva, a mais apaixonada e a mais profunda que já saiu de uma voz humana, sem esquecer uma Billie Holiday ou uma Bessie Smith. É a Amália do "Fado Português" de José Regio, dos poemas de Camões ("Erros meus", "Alma minha gentil", "Sete anos de pastor", "Dura memória", "Com que voz"), de Alexandre O'Neill ("Gaivota", “Verde pinho, verde mastro”), de David Mourão-Ferreira (“Sombra”, “Maria Lisboa”, “Madrugada de "Alfama", "Abandono", "As águias"), de Pedro Homem de Mello ("Prece", "Entrega", "Povo que lavas no rio"), de "Obsessão", "Medo", "Procura", "Cansaço", "Alfama", "Anjo inútil", "Naufrágio", "Raízes", "Fria claridade", "Job", "Fado final", "Fado menor", ​​"Maldição", "Meu nome sabe-me a areia", "Olhos fechados", "Lago", "Interior triste", "Rosa de fogo"... E das suas belas canções, como "Estranha forma de vida" (a mais emblemática de todas, o seu autorretrato definitivo, acompanhada por José Nunes e com música de Alfredo Marceneiro), "Ó ai ó linda" e todos os que compõem os maravilhosos discos Lágrima e Gostava de ser quem era, com destaque para "Lavava no rio lavava", "Tive um coração perdi-o", "Lágrima", “Grito" (o seu fado mais tremendo) e "O fado chora-se bem". Estes últimos discos, mais Obsessão, que foi o último, são impressionantes, com uma voz outonal que perdeu em força o que ganhou em profundidade, por mais impossível que pareça. A letra era dela e a música –esplêndida– do seu guitarrista, Carlos Gonçalves.

Nestes últimos discos, aliás, não houve um único erro, como acontecia nos anteriores exceto no Fado, onde regressava gloriosamente aos belos temas de Frederico Valério, e no inusitado Encontro com um dos grandes saxofonistas do jazz: Don Byas . Embora ela tenha falado mal dessas gravações, já que não houve ensaios e de fato há alguma desconexão entre ela e Don Byas, o resultado é único e impressivo.

Resta citar algumas gravações essenciais, sem as quais o conhecimento do génio artístico-poético de Amália Rodrigues seria incompleto. Trata-se do concerto realizado a 3 de abril de 1987 no Coliseu de Lisboa, uma demonstração avassaladora da madura Amália, do fervor que demonstrava nas atuações ao vivo, no calor de um público que tanto amava e necessitava. Ali consegue não só igualar, mas até superar, as versões de estúdio de "Lavava no rio lavava", "Grito", "Prece", "Obsessão", "Lágrima", "Gaivota" e, sobretudo, "Povo que lavas no rio", mostrando a grandeza desmedida deste ser estranho e irrepetível. "É um fenómeno que aconteceu em Portugal", ouvi dizer a um popular que, como eu, tinha assistido a um concerto seu e se perdia con uns amigos na noite de Coimbra. A voz que levara ao extremo aquele lirismo português de que falei no início, parecia-lhe um prodígio da vida encarnada ao acaso naquele pequeno país, mas era na verdade a apoteose daquele mundo de seiva popular de onde ela veio, e que um misterioso "fado" tinha alimentado con o mais intenso lirismo –o derramamento da "saudade", aquele "sentido da alma", como o definiu um espírito gémeo de Amália, o poeta Teixeira de Pascoaes.